ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE COMPLETA 30 ANOS EM UM CENÁRIO DE CRISE
- elisaromeraf
- 21 de jun. de 2024
- 6 min de leitura
Governo brasileiro demonstrava apoio às políticas que asseguravam os direitos dos jovens, mas essa realidade está mudando.
Por Elisa Romera de Freitas
“Toda criança do mundo/ Deve ser bem protegida/ Contra os rigores do tempo/ Contra os rigores da vida./ Criança tem que ter nome/ Criança tem que ter lar/ Ter saúde e não ter fome/ Ter segurança e estudar./Não é questão de querer/ Nem questão de concordar/ Os direitos das crianças/ Todos têm de respeitar.” Poema de Ruth Rocha|| Foto por Kat Jayne. Retirada do banco de imagens Pexels
Após sua criação em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) atua como uma legislação imprescindível à garantia dos direitos fundamentais dos menores de idade.
Neste ano, o documento comemora o seu trigésimo aniversário em meio a uma crise de saúde pública (ocasionada pela pandemia de COVID-19) que evidencia as vulnerabilidades que crianças e adolescentes sofrem no Brasil.
O Governo Federal, além de tomar medidas problemáticas no combate ao Coronavírus, ataca o Estatuto também de forma direta ao aderir aos discursos que propõem alterações no texto vigente, alegando uma suposta inconstitucionalidade no ECA haja vista algumas interpretações das cláusulas pétreas da Constituição.
Em entrevista à Revista Torta, o mestrando em Serviço Social e graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) João Vítor Dantas Alves afirma que o ECA é uma legislação paradigmática, ou seja, é um modelo mundialmente reconhecido por sua excelência.
Mesmo assim, ele não é seguido à risca em seu país de origem. Visto que o Brasil tolera narrativas favoráveis às violências física e psicológica, considerando-as banais, até mesmo quando proferidas por membros do Governo Federal.
O Estatuto da Criança e do adolescente foi criado sob uma forte influência da Constituição de 1988. Sua abordagem na luta pelos direitos dos menores parte da ideia de que crianças e adolescentes devem ser tratados como sujeitos de direito.
O ECA é pioneiro e tem destaque mundial devido ao seu caráter inovador que causa um impacto global na defesa protetiva da infância e adolescência, especialmente no continente americano. Uma de suas exigências de maior relevância é o Princípio de Proteção Integral.
Dantas Alves explica melhor esse Princípio:
“Não só a família é responsável pela segurança, lazer, direitos sociais, direito à vida e à dignidade da criança e do adolescente. A sociedade, as organizações civis e o Estado são meios importantes que devem assegurar esses direitos”.
Outro ponto destacado por Dantas Alves que demonstra a unicidade do Estatuto, é a garantia do acesso à educação para todas as crianças e adolescentes do país, de forma pública e universal.
A ideia que a Educação é um meio essencial para o desenvolvimento de uma sociedade não é de hoje. Platão defende em sua obra “A República”, que o ensino é o único mecanismo possível para elevar uma sociedade à justiça. Ainda assim, a Educação é desvalorizada no Brasil, tendo em vista as faltas de incentivo governamental.
Em consequência disso, é perceptível que, nas últimas três décadas, o ECA foi diversas vezes menosprezado, o que, inevitavelmente, colocou os jovens em espaços de vulnerabilidade.
De acordo com os pontos mencionados acima, o ECA apresenta uma excelente previsão de medidas, mas a sua prática efetiva não é alcançada no território brasileiro. Em 30 anos, não houve políticas públicas suficientes para contemplá-lo por completo, já que, muitas vezes, foi alvo de negligência.
Segundo Dantas Alves, o período histórico em com o maior fortalecimento da legislação foi do final do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006, até o governo de Michel Temer, em 2016.
O advogado afirma que o governo petista foi essencial para a valorização dos direitos da criança e do adolescente. Isso porque promoveu uma alta na criação de conselhos e a ampliação de vagas em escolas públicas e creches.
Para o mestrando, que adota a linha de pensamentos de Paulo Freire, a Educação é um instrumento fundamental na manutenção da Democracia e no fortalecimento popular:
“A Educação é aquela que vai emancipar o mundo. O acesso à Educação desde o berço tornou o país, neste período, menos desigual”.
A concordância do governo petista com a narrativa de Platão acarretou na conquista da redução de diversas violações da segurança de crianças e adolescentes.
O PNE prevê que o Ensino Fundamental de 9 anos seja universalizado para toda a população de 6 a 14 anos e que seja garantida a conclusão por, pelo menos, 95% dos alunos na idade recomendada || Foto retirada de Pixabay
No âmbito educacional, ocorreu a criação do Plano Nacional da Educação (PNE), que estabeleceu diversas metas para serem atingidas até 2024 como, por exemplo, o combate completo ao analfabetismo.
Outra demonstração disso foi o aumento do número de jovens frequentando o ambiente escolar. Em 2013, 97,1% das crianças de 6 a 14 anos matricularam-se no Ensino Fundamental.
Já na saúde pública, foi evidente a redução nas taxas de mortalidade infantil. Em comparação a 1980, década anterior à criação do Estatuto, nos índices de 2013, observa-se uma queda de 78%. Nesse mesmo período, também foi identificada uma diminuição na taxa de mortalidade materna, que caiu em 43%.
Entretanto o grande impacto exercido por esses avanços não contempla a totalidade das medidas protetivas do ECA. Uma vez que o documento, dividido em duas partes, prevê, respectivamente, a implementação de políticas públicas e a imposição de punições para controle dos “desvios comportamentais”. E, dessa forma, ocorre uma problemática, pois a superexecução da segunda parte revela a deficiência no desempenho da primeira.
No Governo Bolsonaro, a negligência às políticas favoráveis aos menores de idade é maior do que a vista em governos anteriores. O presidente eleito realiza ataques diretos à legislação, fazendo menções que defendem o trabalho infantil e até mesmo declarando que o ECA deveria ser “rasgado e jogado na latrina”:
“Hoje em dia é tanto direito, tanta proteção que temos uma juventude aí que parte considerável não está na linha certa. Então o trabalho dignifica o homem, a mulher, não interessa a idade”.
O discurso simpatizante de Bolsonaro ao trabalho infantil, assim como as suas narrativas de apoio à redução da maioridade penal, são ameaças diretas ao ECA e à Constituição. Já que os textos não permitem a flexibilização ou a redução de garantias fundamentais indissolúveis cujos objetivos são a proteção da criança e do adolescente.
Durante a entrevista, Dantas Alves aponta que com a redução da maioridade penal, muitos menores de 18 anos perderiam a possibilidade, prevista no ECA, de passar por uma reintegração e reeducação social, adotada na Fundação Casa.
As ameaças não são proferidas apenas pelo presidente eleito. O indicado a Ministro da Educação, Milton Ribeiro, defendeu a agressão infantil como forma de correção.
A declaração contraria a Lei Menino Bernardo, promulgada em 2014, que garante às crianças e adolescentes o direito de serem educados e cuidados sem castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante.
Além disso, as narrativas anticiência de Jair Bolsonaro também são caracterizadas como ameaças ao ECA. O governo diversas vezes posicionou-se contrário à educação sexual e mostrou-se avesso ao laicismo educacional no Brasil.
A vulnerabilização da criança e do adolescente no cenário pandêmico
A pandemia da COVID-19 afeta diretamente os adultos e idosos, porém, é impossível negar a influência negativa que a medida preventiva de distanciamento social exerce sobre as crianças e adolescentes brasileiros.
Assim como as mulheres, as crianças se tornaram mais vulneráveis, o que é refletido no aumento do número de denúncias de agressões e abusos em meio à pandemia.
Levando em conta o Princípio de Proteção Integral, é possível compreender que, ao manter os vulneráveis dentro de casa, a comunidade e o Estado se tornam mais fracos na defesa dos direitos infantis e adolescentes, prevalecendo o domínio da família.
Ao retirá-los do ambiente escolar, a possibilidade de denúncias para autoridades que não pertencem à família é reduzida, de maneira que o grupo, já fragilizado, torna-se incapaz de recorrer ao Estado pela defesa desses direitos.
O Congresso Digital dos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, organizado pelo Conselho Nacional da Justiça, que ocorreu nos dias 13 e 14 de julho de 2020, ressaltou a importância da legislação no momento de fragilidade vivenciado durante a pandemia para que não haja a perda das diversas conquistas do Estatuto até então.
O enfraquecimento da Educação pública no Brasil durante a crise epidemiológica é outro ponto que deve ser destacado. A esfera gratuita de ensino não detém a estrutura necessária para sustentar aulas a distância. Além disso, grande parte dos alunos não possui acesso à internet e nem aos aparelhos eletrônicos necessários para a realização das aulas.
A fragilidade educacional está gerando grandes perdas aos estudantes de Ensino Fundamental e Médio das escolas públicas e, assim, impedindo a emancipação e o combate à desigualdade social, propostas pela educação universal garantida pelo ECA.
O acesso ao ensino é necessário para o fortalecimento dos direitos das crianças e da população em geral. Portanto, a sua falta, em momentos de crise, proporciona consequências danosas e que potenciam a vulnerabilidade. Diante disso, o Governo Federal permanece em silêncio ou opta por proliferar discursos minimizadores da gravidade da pandemia.
A irresponsabilidade e a negligência governamental debilitam a sociedade. O bem econômico e social é resultado de um efetivo cuidado com nossas crianças e adolescentes.
O ECA considera criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente o Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade || Foto retirada de Pixabay
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